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No Arizona, o muro de Trump já existe

Passada a vila de Sierra Vista, no Arizona, e vários quilômetros de estradas empoeiradas, a fronteira se anuncia. Em uma colina que abriga a vanguarda da vigilância, surge o rancho de Glenn Spencer. Com a barba recém-feita, ele está de pé desde as 3 horas da manhã, como faz todos os dias, para interceptar as transmissões de rádio dos agentes da polícia de migração, a US Border Patrol.

No círculo dos militantes anti-imigração, esse aposentado é uma lenda. Fundador do grupo American Border Patrol, autor de um blog sempre atualizado1 e muito ativo nas redes sociais, ele se orgulha de ser um dos primeiros a ter teorizado a reconquista, isto é, a invasão programada dos Estados Unidos pelo México. Segundo essa doutrina muito popular entre a “direita alternativa” (alt-right), a imigração hispânica responderia a uma sede de vingança histórica, após as derrotas militares do século XIX que levaram à anexação, pelos norte-americanos, de uma grande parte do território mexicano.

A eleição de Donald Trump o encheu de alegria, assim como a 48% dos eleitores do Arizona (4 pontos a mais do que Hillary Clinton). Aos 80 anos, Spencer sobreviveu a todas as extravagâncias anti-imigrantes, incluindo os grupos de autodefesa armados, os famosos vigilantes, que se multiplicaram no Arizona após o 11 de Setembro, patrulhando o deserto em roupas camufladas para interceptar migrantes e traficantes de drogas. Seus líderes estão mortos, presos ou sumiram do radar. “Não tinha como dar certo. Imagine uns caras, no topo de uma montanha, com espreguiçadeiras, cervejas e fuzis AK-47. Totalmente ineficaz. Foi o tédio que os matou”, avalia Spencer. Seus métodos são mais modernos. Ele instalou em sua propriedade detectores sísmicos enterrados em intervalos regulares, dispositivo que sonha ver instalado ao longo dos 3.145 quilômetros de fronteira que separam os dois países. Após catorze anos de trabalho e graças à ajuda de uma pequena equipe dedicada, os detectores “são capazes de diferenciar entre um coiote, um veículo e uma vaca”, detalha o sismólogo em formação, ex-funcionário da Chevron e da Texaco. Antes, ele procurava petróleo; “hoje, rastreio seres humanos”.

Ao nascer do sol, Spencer nos oferece uma demonstração. Um assistente afasta-se do rancho para fazer o papel de clandestino. Os sensores dispostos a cada 73 metros detectam seus passos e transmitem a atividade para um monitor. Em seguida, um drone Parrot, de fabricação francesa, “o mais confiável”, levanta voo para filmar o intruso com um software de reconhecimento facial. “O drone pode emitir advertências. Cuidado! Go back! [Atenção! Para trás!], esse tipo de coisa…” Spencer ridiculariza a ideia de um muro de concreto: com seu sistema de sensores e drones, “poderíamos finalmente saber quem faz a travessia e ter números precisos. E meu projeto é melhor para o ambiente. Os animais podem atravessar à vontade”.

No dia 6 de março de 2017, o Departamento de Segurança Nacional (Department of Homeland Security, DHS) lançou um edital para a construção do tão prometido muro. Como mais de quatrocentas empresas, startups e gigantes da indústria de defesa, o rancheiro enviou sua proposta à administração Trump. O documento de doze páginas é o projeto de toda uma vida.

Trump já disse que quer um muro de 10, 15, 24 metros de altura, dependendo do dia; no início de junho, mudou novamente de ideia e propôs a construção de uma barreira ecológica de painéis solares. Qualquer que seja o formato – visível ou invisível, a laser ou de concreto –, o muro seria pago pelo contribuinte, ou seja, construído com os “dólares dos impostos” –, embora o presidente diga que “o México vai pagar”. Idealmente, a administração tinha previsto tomar suas decisões antes do verão e distribuir as verbas, mas nada saiu como planejado. O Congresso arrasta os trabalhos, estados democratas ameaçam boicotar as empresas participantes, e o vizinho mexicano desenterrou, em abril, um antídoto jurídico: um tratado de 1970 que torna passível de processo judicial a construção de uma obra que impeça a livre circulação das águas subterrâneas entre os dois países. Em maio, Trump pediu que o Congresso libere US$ 1,5 bilhão para adicionar somente 120 quilômetros de barreira ao dispositivo atual. Dizer que suas ambições foram revistas para baixo é um eufemismo: alguns republicanos no Congresso já falam do muro de Trump, um argumento central de sua campanha, como uma simples metáfora.2

A façanha do presidente norte-americano é ter feito os eleitores acreditarem que antes dele a fronteira era uma peneira. Na verdade, ele acrescentará, na melhor das hipóteses, apenas uma fina camada a uma demarcação já militarizada e superprotegida. Porque o muro já está lá, congestionando as áreas urbanas e os pontos de passagem movimentados. Todos os presidentes, desde Bill Clinton (1993-2001), colocaram seu tijolo na obra.

Antes era uma simples cerca de gado

Cem quilômetros ao sul de Tucson, em pleno deserto, a cidade de fronteira de Nogales é cortada em duas por uma fileira de postes enferrujados com 6 metros de altura. Pode-se ver através deles. Dois amantes podem dar as mãos, mas não se abraçar. Da vidraça do último McDonald’s dos Estados Unidos podemos apreciar uma vista panorâmica das favelas mexicanas no flanco da colina. Abaixo se encontra a “porta de entrada” de Nogales, uma vasta estação de triagem para mercadorias e pessoas.

Do lado do México, Nogales é mais animada, mais suja. Após a alfândega alinham-se barracas de produtos farmacêuticos (Viagra, Cialis…) e consultórios odontológicos. Os tratamentos custam um quarto do preço no México, e os aposentados gringos vêm até do Alasca para colocar uma ponte dentária. A cidade se vira como pode. Desde o 11 de Setembro, a fronteira está cada vez mais fechada, e os turistas, cada vez mais desconfiados. “Nós lutamos para derrubar o Muro de Berlim, e olha o que construímos”, filosofa Jesus,3 veterano do Vietnã e binacional, que goza sua aposentadoria no Arizona e vai a Nogales no fim de semana tomar umas cervejas. Jesus é dos velhos tempos, quando fazer a travessia significava simplesmente pular uma cerca de gado. Ele passava sem problema para ir cavar nas minas de cobre de Wyoming. Um trabalho duro. Jesus saía dos túneis “com a barba congelada”. Esse muro “é para impressionar. Mas, por cima ou por baixo, as pessoas vão sempre achar um jeito de atravessar”, diz ele apontando com o queixo. Os moradores colocam cruzes de madeira em memória dos migrantes mortos e fazem pichações enraivecidas – “pinche migra” [patrulha maldita].

A fronteira de Nogales parece a de um país em guerra. Desde 2001, os Estados Unidos gastaram mais de US$ 100 bilhões para se proteger do México, mais que os orçamentos do FBI, da Drug Enforcement Administration (DEA, a polícia antidrogas) e dos serviços secretos juntos. A temida Border Patrol conta com os equipamentos mais modernos. Ao longo da fronteira, as cidades de Tijuana, Nogales, Agua Prieta e Ciudad Juárez são vigiadas por câmeras de infravermelho, drones voando alto demais para serem vistos a olho nu e agentes de uniforme verde-escuro que fazem a patrulha em enormes veículos 4×4. Torres de monitoramento da empresa israelense Elbit Systems, testadas na fronteira entre Israel e Palestina, varrem o deserto, podendo ser vistas a partir da rodovia 19. Uma compra aprovada em 2014 por Barack Obama, por US$ 148 milhões: “Se déssemos dinheiro aos migrantes para não vir, provavelmente seria mais barato”, já ironizou um analista.4 As expulsões explodiram durante a presidência de Obama (3 milhões de pessoas entre 2009 e 2016, mais que nos governos anteriores). Porém, esses números, que valeram ao Prêmio Nobel da Paz o apelido de “deportador-chefe”, devem ser analisados com precaução. Desde 2005, cada recondução é notificada; antes, os interrogatórios na área de fronteira eram frequentemente informais, nem sempre aparecendo nas estatísticas.5

Uma coisa é certa: o saldo migratório se inverteu. Desde a crise de 2008, mais mexicanos atravessam a fronteira rumo ao México do que no sentido contrário. Aposentados voltam a se estabelecer no país após anos de trabalho duro, enquanto as partidas caem drasticamente: entre 2009 e 2014, 870 mil mexicanos foram para os Estados Unidos, contra 2,9 milhões entre 1995 e 2000. Em 2015, segundo um estudo do Pew Research Center, um terço dos mexicanos considerava que a qualidade de vida era “equivalente nos dois países” (contra 23% em 2007).6 A eleição de Trump parece ter reduzido ainda mais o fluxo. Em janeiro e fevereiro de 2017, o número de detenções de migrantes pela Border Patrol caiu 40%;7 nos anos anteriores, elas tendiam a aumentar com a chegada da primavera.

Os migrantes sem documentos interceptados pela patrulha de Tucson são transportados de ônibus e deixados em Nogales, após uma estadia mais ou menos longa na detenção. Destruídos pela exaustão, eles encontram refúgio no Comedor, uma cantina modesta dirigida por freiras. Para chegar ao estabelecimento, passa-se pelo cemitério municipal, onde as sepulturas servem de cama improvisada. Os expulsos se reconhecem por suas camisetas azuis e pelo saco plástico transparente que lhes são dados no fim da detenção. Nele estão todas as suas posses, às vezes dinheiro. Encontrar roupas novas é a prioridade número um: assim fantasiados, eles são presas fáceis para os bandidos de Nogales.

Por trás da grade trancada da cantina, seis grandes mesas acomodam três dúzias de olhares perdidos. A irmã Alicia cuida, aconselha, reserva uma recepção especial para os novatos, um sorriso, um chocolate quente. Alguns foram frustrados em sua travessia do deserto, mas há outros que já viviam nos Estados Unidos havia anos e foram parados por causa de “uma lâmpada queimada” – a tragédia clássica daqueles que estão em situação irregular. Um celular permite telefonar às famílias. A encarregada do aparelho apaga cuidadosamente cada número discado: “Mãos erradas podem querer extorquir dinheiro das famílias, alegando sequestro”. Nenhum expulso é nativo de Nogales: os migrantes vêm do sul rural – Chiapas, Guerrero, Oaxaca –, onde o trabalho mal paga o milho para alimentar as galinhas. Alguns nem falam espanhol, mas um dialeto indígena. “A miséria e a violência dos cartéis são os dois fatores de pressão”, explica Joanna Williams, da Kino Border Initiative, uma ONG binacional que financia o Comedor.

“Samaritanos” deixam recipientes com água

Antes de atacarem o café da manhã, juntam-se as mãos e murmuram uma oração para a Virgem, de olhos fechados. A irmã Marivel preenche um questionário para cada migrante: “Você foi assaltado, estuprado, sequestrado, espancado? Pelo seu guia? Pela polícia mexicana? Pela polícia de migração? Pela máfia organizada? Marque o item correspondente”. Salvador conta seu fracasso estúpido. Ele não teve nem a oportunidade de desafiar o deserto. Seu guia o deixou no meio do nada, do lado do México, dizendo que já estava do outro lado. No entanto, “ele parecia de confiança”. Salvador entregou-lhe os US$ 3 mil que seus sobrinhos, trabalhadores da colheita na Califórnia, emprestaram para pagar a passagem. Evaporados numa trilha poeirenta em 4×4. Ratero, ladrão: Salvador quer sumir debaixo da mesa. Ele dorme há 25 dias no chão da rodoviária de Nogales, come e se limpa no Comedor. Para ele, acabou. Ele pretende voltar para Michoacán, “aonde as borboletas-monarca vão para se reproduzir”. Menos um trabalhador sem documentos para a colheita das vinícolas californianas.

Outro migrante se agita, com um olhar de louco. Uriel fala a gíria da fronteira, onde os migrantes são pollos, frangos, guiados pelo pollero, muitas vezes jovem e um nada mais rico. Acima, na hierarquia, está o coyote, em seu 4×4, com o smartphone colado na orelha, falando com o cartel. Os chefes mesmo estão longe. Eles administram o negócio por meio de seus capangas e recebem la plata, o dinheiro.

A militarização da fronteira criou um mercado tão lucrativo quanto o tráfico de drogas. Hoje, para se tornar guia, atravessar em grupo ou mesmo sozinho, é necessário pagar os cartéis. Tentar a aventura sem falar com eles é como assinar uma sentença de morte. O contrabando de drogas e de pessoas tende a se fundir, quando os migrantes são obrigados a transportar pacotes de drogas de 25 quilos como dízimo.

Uriel se vê como uma espécie de supermigrante. Ele já atravessou o deserto cinco vezes para trabalhar “na construção”, na Califórnia. Em cada uma delas, deixou cerca de US$ 2 mil para os coyotes. Esse veterano do Exército mexicano conta seus segredos para desafiar o deserto, como “cavar buracos no chão e colocar um saco plástico para recolher o orvalho”. Quando conta a aventura de seu grupo, suas mãos peludas planam sobre a mesa como se movessem fichas de pôquer. Um guia, quatro pollos, sendo duas mulheres, e ele próprio. “Os pollos pedem água o tempo todo, pedem isso, pedem aquilo, uns chorões.” Uriel não conta como foi pego. Seu grupo foi muito lento: da próxima vez, ele vai sozinho.

Helicópteros, muro, patrulhas e brigadas caninas: Washington bloqueou tudo ao longo dos anos, exceto o deserto, tão hostil que se pensava que ele bastaria por si só. Mas os migrantes tentam a sorte, caminhando cada vez mais longe. Essa estratégia “transformou o setor de Tucson em um funil para a morte”, alarma-se Jean Kreyche desligando seu Jeep do lado do Arizona, no pé do maciço da Sierrita, marcado por fendas e escarpas. Entre 1999 e 2017, mais de 3 mil corpos de migrantes foram encontrados na região de Tucson, mortos de sede ou de frio, ou caídos em ravinas durante perseguições com a polícia de fronteira.

Kreyche dirige uma patrulha de “samaritanos”, um ramo da Igreja Presbiteriana de Tucson do Sul criado em 2002, ano em que as mortes no deserto se multiplicaram por dez. Três vezes por semana, ela sai com um punhado de voluntários para abastecer pontos de água e distribuir kits de sobrevivência. A idade média da patrulha do dia, composta por três aposentadas com roupas de caminhada, é de 67 anos. Na paisagem monótona e esplêndida, onde a brisa escaldante faz os arbustos assobiarem, as samaritanas procuram gaviões voando baixo em círculos. Eles funcionam como guias: para encontrar um corpo, é melhor olhar para o céu do que para o chão. Nas montanhas, colocam recipientes com água nas trilhas. Os migrantes mudam constantemente de caminho, no jogo de gato e rato com a polícia de migração, mas deixam vestígios: papéis sujos, jeans, blusas, latas de Red Bull, caixas de estimulantes – os guias fazem os migrantes tomarem para que andem mais rápido. Observam-se as datas de validade, talvez sinais de uma recente visita. Uma meia da Hello Kitty, de tamanho para calçar uma menina, repousa sobre um cacto.

Tornozelo torcido significa morte provável

Os samaritanos mantêm um mapa atualizado dos mortos, indicados com pontos vermelhos em seu GPS. A Border Patrol às vezes os encontra nus, com a boca machucada pelos cactos, que eles tentam comer em um último delírio, ou os membros estendidos, como se nadassem na areia. Alguns desabam a 50 metros de um posto de gasolina. “Muitos migrantes nunca saíram de sua terra tropical, não têm nenhuma ideia da hostilidade do deserto. Para eles, o deserto é uma abstração”, explica Kreyche. Mal informados pelos guias, cometem um erro atrás do outro: “Vêm sem chapéu, de roupa preta, sem água suficiente, sem proteção para a noite”. Um tornozelo torcido significa o abandono do grupo e a morte provável.

Muitos corpos não são recuperados: a prioridade da Border Patrol é pegar os vivos. Os organismos se decompõem rapidamente no deserto, e os coiotes espalham os ossos. Uma associação parceira dos samaritanos estima o número de mortos desde 2001 em mais de 6 mil, mas “não é possível obter um número total”, avalia Maryada Vallet, da No More Deaths [Chega de Mortes]. “O que é certo é que o deserto é propositadamente usado como uma arma mortal.” A estratégia tem um nome, popularizado durante a gestão de Bill Clinton: “prevenção pela dissuasão”. Uma artista local planta cruzes de madeira onde corpos são encontrados. Diante de uma das cruzes, o GPS dos samaritanos indica “Corona Vargas, Marco Antonio. 13/10/2007. Provável hipertermia”. É quase um morto de sorte: conseguiram descobrir sua identidade.

Os mortos do deserto têm seu último encontro no mesmo prédio de tijolos: o instituto médico-legal de Tucson. Greg Hess, o legista, é a pessoa mais sobrecarregada da cidade. Durante um pico de mortalidade em 2010, ele teve de recorrer a caminhões frigoríficos para acomodar os defuntos. Atualmente tem “150 corpos para identificar”. Este ano, no dia 1º de abril, a conta era de quarenta mortos, 38 deles encontrados já como esqueletos. “Nesses casos, a identificação pode levar meses, até anos”. A família do falecido precisa tomar a dianteira, manifestar-se no consulado ou junto a organizações humanitárias, e enviar uma amostra de DNA. Se o morto permanece desconocido, seus restos mortais acabam por descansar em uma urna no cemitério da cidade.

A ironia dessa tragédia silenciosa é que Tucson precisa de trabalhadores ilegais para funcionar. Nada de especial: nesse sentido, todas as cidades dos Estados Unidos se tornaram cidades de fronteira. Pequenos empregadores ou grandes empresas contratam trabalhadores sem documentos com a tolerância das autoridades. Uma mão de obra confiável, barata, que participa da economia e paga impostos. Por que abrir mão dela? Eles estão nos restaurantes, nos hotéis, no campo. Preparam o almoço nas cantinas escolares e nos hospitais. Em Tucson, ao amanhecer, eles se reúnem em grupos diante das muitas igrejas qualificadas como “zonas sensíveis” pela prefeitura: esse estatuto lhes garante algum grau de imunidade em relação à polícia, desde que não cometam infrações. Estão à espera de seus empregadores do dia, para obras ou jardinagem. “Eles fazem mais que lavar pratos nos restaurantes”, explica Kelzi Bartholomaei, uma norte-americana de ascendência mexicana que por muito tempo foi proprietária do restaurante Mother Hubbard’s e hoje é produtora independente de embutidos. “Estão nas casas de repouso, cuidando das pessoas… em todos os setores. É triste dizer, mas eu tenho saudade dos anos Bush. Ele era unha e carne com o presidente Vicente Fox. O clima era mais tranquilo. Tirei minha dupla cidadania nessa época. Hoje, com Trump, meus fornecedores, agricultores de Iowa, não encontram mais ninguém para trabalhar. A colheita apodrece no pé. É uma catástrofe.”

Nos postos de fronteira, os funcionários estão rigorosos desde a eleição, e as filas ficam mais longas. As igrejas temem perder seu estatuto de santuário: “Começaram as buscas policiais no país”, suspira Lisa McDaniel-Hutching, pastora em Amado, uma vila no meio do caminho entre Tucson e o México. “Antes da militarização do muro, a passagem era livre, dos dois lados.” A religiosa acredita que não se fala o suficiente sobre as “causas profundas da migração de trabalho. É evidente que os acordos de livre-comércio arruinaram o campesinato mexicano. De certa forma, os Estados Unidos criaram essa situação”.

Os defensores dos migrantes veem o diabo na Border Patrol, que consideram bruta. São 4.200 patrulheiros no setor de Tucson, “um dos mais ativos em termos de migração e contrabando de maconha”, diz o site da Border Patrol na internet. Mas os agentes, muitos deles latinos, sentem-se desvalorizados. Menos pelo atual presidente, que prometeu 5 mil novos recrutamentos. A Border Patrol é um grande silêncio, mas seu principal sindicato, o National Border Patrol Council, fala mais: aliás, foi o único sindicato de trabalhadores dos Estados Unidos a apoiar publicamente a campanha de Trump. Em Tucson, 80% dos agentes contribuem com o sindicato. Seu chefe, Art del Cueto, é uma figura importante, vice-presidente nacional e figura midiática do trumpismo. Cultivando uma imagem de macho e heavy metal, há três anos ele mantém um podcast para suas tropas, The Green Line, uma espécie de roda de conversa entre agentes, em um tom roqueiro e conservador. O programa saiu do anonimato após uma entrevista com o candidato Trump,8 na qual ele assegurou “100%” de apoio. Desde sua criação, o programa é financiado pela rede on-line de extrema direita Breitbart News, outrora liderada por Steve Bannon, atual assessor do presidente.

Homem muito ocupado, Del Cueto declinou a entrevista, mas um advogado do sindicato falou em seu nome. Jim Calle defende a Border Patrol há quase vinte anos em diversos casos, incluindo os que envolvem corrupção de oficiais e migrantes mortos. Localmente, esse ex-jornalista é muitas vezes ridicularizado como “o democrata de plantão”. Calle garante que o moral das tropas está mais alto desde a eleição de Trump: “Ele ajudou a abrir uma discussão sobre a imigração”. Calle viu seu trabalho mudar profundamente em vinte anos, com a militarização da fronteira. “Quando comecei, em 1998, todos os migrantes vinham em busca de trabalho. Em grupos de cem… Era uma coisa desorganizada, em família. Hoje, tudo é controlado pelos cartéis. Os grupos não passam de seis ou oito pessoas. Um agente que pega dois migrantes em um dia pode se considerar feliz. Os contrabandistas passam as drogas por meio de túneis e catapultas. Os cartéis também utilizam menores, que pulam o muro como saguis assim que os agentes viram as costas. Fique uma hora observando o muro em Nogales, você vai ver.”

Com forte espírito de grupo, a Border Patrol age na opacidade, sendo acusada de métodos cruéis. A ela é imputada a morte de pelo menos 45 pessoas no país entre 2005 e 2014.9 Entre os raros casos de homicídios que sofreram processo penal, nenhum agente do setor de Tucson foi condenado, nem quando três adolescentes foram mortos em circunstâncias pouco claras. Assim como José Antonio Rodriguez Elena, 17 anos, baleado quando voltava para casa em Nogales. O caso ainda agita a fronteira, quatro anos e meio após o crime. O local de sua morte, na Calle Internacional, de frente para o muro, está marcado com uma cruz, um buquê de plástico e um adesivo em espanhol: “Exigimos justiça”. O agente envolvido, lotado do lado do Arizona, crivou a vítima com dez balas, oito delas nas costas. Inicialmente ele afirmou que o menino estava atirando pedras contra ele e que atirou para se defender, versão que as testemunhas negam. Há uma gravação em vídeo do assassinato, mas a Border Patrol não a apresentou à justiça; Calle explica que o vídeo foi “comprimido por engano” e ficou com uma qualidade muito ruim para ser útil. Os catorze pesados arquivos do caso, alinhados em seu escritório, cobrem todo o rodapé de uma parede. Essa tragédia tornou-se um caso complexo de incidente transnacional: tanto do lado do atirador como da vítima, os advogados afiam suas interpretações do direito.

Reforma não está mais no horizonte

Calle insiste na singularidade da Border Patrol – “uma força paramilitar, encarregada de confrontar os clandestinos de maneira ativa” –, em seu trabalho exemplar e nos perigos da profissão. Em caso de incidente, “os agentes são sistematicamente interrogados por um comitê interno. Estima-se que um migrante a cada vinte, talvez a cada dez, seja contrabandista… Encontramos expulsos de El Salvador que voltam à atividade, membros de gangues… Eles sabem correr, brigar, e adoram fingir que foi a Border Patrol que os agrediu”. Em geral, é a palavra de um migrante ilegal contra a de um oficial.

Um relatório divulgado no ano passado para o DHS recomendava 39 medidas para reduzir o “uso inconstitucional de violência” e o “risco de corrupção desenfreada” dentro da força.10 Os cartéis estão infiltrados na força e já cooptaram dezenas de agentes. Escrito por militares de alta patente e agentes da DEA, o documento descreve uma patrulha em crise de crescimento, doente por não punir seus culpados. Mas, com a vitória de Trump, uma tentativa de reforma não está mais no horizonte. Ao contrário, a Casa Branca prometeu “libertar os agentes de seus entraves”.

*Maxime Robin é jornalista.

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Passada a vila de Sierra Vista, no Arizona, e vários quilômetros de estradas empoeiradas, a fronteira se anuncia. Em uma colina que abriga a vanguarda da vigilância, surge o rancho de Glenn Spencer. Com a barba recém-feita, ele está de pé desde as 3 horas da manhã, como faz todos os dias, para interceptar as …
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